quinta-feira, 14 de março de 2013

DIA DA POESIA

 
14 de março: DIA NACIONAL DA POESIA. A data foi instituída no dia do aniversário de Castro Alves, o "poeta dos escravos" - pois lutou firmemente contra a escravidão. Em seus poemas "Navio Negreiro", "A Canção do Africano" sua indignação quanto ao preconceito é destaque principal.

Hoje é dia de fazer, ler, enviar poesia. Mas não se esqueça de fazê-los não só hoje, porque TODO DIA É DIA DE POESIA! No painel acima, alguns poetas que admiro, dentre os quais os canindeenses José da Cruz Filho (principe dos poetas cearenses) e o cordelista Gonzaga Vieira.

 

domingo, 10 de março de 2013

MEMÓRIAS

MINHA PRIMEIRA BIBLIOTECA

Arievaldo Viana

Como já disse repetidas vezes, o primeiro tipo de literatura que tive acesso foram os romances de cordel de minha avó, guardados numa maleta empoeirada* que jazia abandonada em cima do caixão da farinha, no quarto grande da casa velha. Uma vez, ao tentar descer desse caixão, acabei escorregando de mal jeito, com as costas contra a parede e, como estava sem camisa, fiquei sem uma tira de couro do espinhaço. Essa casa fora a antiga habitação de meus avós quando vieram do Castro para o ‘Toco preto’, rebatizado oportunamente de Fazenda Ouro Preto, nome que permanece até hoje. Era terreno inóspito, desabitado, quando o casal resolveu desbravá-lo na companhia de uma numerosa prole de filhos ainda pequenos. No terreiro havia um paiol de milho onde, por mais de uma vez, foi avistada uma onça. Ao nascente fica a Serra do Peitão e o serrote dos Três Irmãos, três gigantescos monólitos de feição similar. Ao sopé do primeiro bloco de pedra fica a belíssima fonte das Coronhas, um reservatório de água potável, para onde fui algumas vezes na companhia do meu pai, sempre cantarolando em voz alta antigas canções de viola ou romances de cordel. Descrevo esse cenário em versos, no meu ‘Marco cibernético do Reino dos Três Irmãos’, cordel lançado pela Tupynanquim Editora.

Além desses folhetos e romances, havia também alguns livros que não me era permitido folhear. Dentre os quais, dois volumes do romance O mártir do Gólgota, do escritor espanhol Enrique Pérez Scrich, obra muito popular no Nordeste desde meados do século XIX. A edição era encadernada em capa dura com carneira de couro e fora impressa em Portugal, em 1883, em português arcaico e ilustrada com belas gravuras de metal. Havia ‘A Bíblia das Escolas’, edição de 1912, que pertencera ao meu bisavô Fitico, que apesar do texto em português fora editada na Alemanha. Esse livro desapareceu misteriosamente da minha biblioteca, levado talvez por algum parente ‘saudosista’. Tinha também alguns livros escolares, que pertenceram às minhas tias e na casa dos meus pais os livros escolares de minha mãe, que fora estudante do Ginásio Gustavo Barroso, em Maracanaú, no início da década de 1960. Havia ainda a primeira edição de ‘O sanfoneiro do Riacho da Brígida’, biografia de Luiz Gonzaga escrita por Sinval Sá e um livro curioso, escrito por um frade, intitulado ‘Através das campinas e matagais’ narrando as aventuras deste religioso em pleno sertão de Matogrosso, na companhia de um índio valente chamado Ibituruna. E para meu deleite maior, uma edição de ‘Sertão Alegre’, de Leonardo Mota, que pertencia a meu tio Zé Viana, mas que estava por lá há muito tempo, sem que o dono reclamasse a sua devolução. Estes livros eu só pude ler realmente quando estava beirando os dez anos e já tinha responsabilidade suficiente para não rasgá-los ou colorir suas gravuras com lápis de cor.

Sempre vivi agarrado com livros e folhetos. Depois do almoço, armava uma rede no alpendre e me deliciava com a leitura. Meu avô gracejava me chamando de jacaré: -  ‘Olha aqui, Alzirinha, o jacaré já está de novo na lagoa’. É que os outros meninos da redondeza, meus primos principalmente, não eram muito afeitos à leitura e passavam o dia aprontando reinações numa velha capoeira que começava logo após o quintal dos fundos, onde estava situada a cacimba do gado. Após o almoço livres da escola ou de pequenas tarefas domesticas que desempenhavam desde a mais tenra idade – e isso incluía transportar água em jumentos, cortar capim para dar aos animais, plantar, colher algodão, milho e feijão – eles iam para a cacimba munidos de baladeiras derribar enxuís e matar passarinhos. Raramente eu os acompanhava nessas incursões, preferindo sempre as minhas leituras na redinha de balanço.

Não havia aparelho de TV, nem geladeira, nem qualquer eletrodoméstico por uma questão óbvia: não havia energia elétrica e por isso a gente dormia cedo e acordava cedo, tendo como principais fontes de entretenimento o rádio, os folhetos de cordel e as histórias contadas à luz de lampiões a gás. Meu avô sabia alguns contos de bichos, da raposa sabida que foi lograda pelo canção, das andanças de Jesus e São Pedro pelo mundo, das peripécias de Camões e Pedro Malazartes, da mulher que enganou o diabo. Era um mundo de coisas que desfilava pela sua prosa e simples e envolvente. Já minha avó tinha o hábito de ler em voz alta para os netos, sobretudo folhetos de cordel. Mas havia também um livro de contos da carochinha, de capa colorida e fartamente ilustrado onde havia Cinderela, Guilherme Tell, O rouxinol e a rosa, O gato de botas e outras histórias envolventes que se tornavam mais belas através de sua narrativa, porque ela sempre nos tirava alguma dúvida sobre lugares, objetos e costumes que não conhecíamos. Foi esta a minha primeira biblioteca e dela eu guardo as mais gratas recordações. Esses livros ficavam nas gavetas dos móveis da sala de jantar e estavam sempre à mão. Os livros religiosos ficavam na gaveta de um pequeno oratório, que havia no quarto onde ela costurava. A edição mais luxuosa da Bíblia Sagrada era guardada a sete chaves no seu guarda-roupa. Eu tinha franca predileção pelas histórias do Antigo Testamento: A história de José e seus irmãos, o Êxodo do povo de Israel e suas peregrinações pelo deserto do Sinai, as batalhas de Josué, Sansão e Dalila, Davi e Golias, o livro dos Reis, Esther, Tobias até desaguar na saga dos Macabeus. Li tudo isso antes de completar dez anos de idade, me detendo, inclusive, nas notas de rodapé, numa fonte tão minúscula que hoje eu não seria capaz de decifrar, a não ser com a ajuda de bons óculos ou lente de aumento.

Quando completei dez anos passei a estudar na cidade e a ter contato com outros livros, histórias em quadrinhos e até bolsilivros de faroeste. Nada disso me marcou tanto como os livros e cordéis da velha biblioteca de minha avó. Eu gostava mesmo era quando chegavam as férias de julho ou do fim do ano para reler tudo aquilo que eu já sabia de cor. No mercado de Maranguape, para onde eu me dirigia quase todos os sábados, eu ampliava o meu estoque de folhetos. Havia ali, em 1979, um folheteiro que sempre aparecia nos finais de semana com um grande sortimento de folhetos das tipografias de Juazeiro do Norte e Campina Grande. O dinheiro era curto, pequenas remessas que minha avó mandava de vez em quando dentro das cartas que me escrevia e era destinado à merenda no colégio. Eu preferia poupar esses tostões – numa verdadeira dieta de faquir – para comprar meus folhetos no final de semana. Por esse tempo eu já escrevia meus primeiros versos nos cadernos escolares. É uma pena não haver guardado quase nada dessa produção, pois eu escrevia com muita freqüência. Fazia as capas dos folhetos em papel de embrulho, que nesse tempo era colorido – rosa, verde, laranja... Eu tentava imitar a fonte tipográfica, por isso desde cedo escrevo sempre em letra de forma. Nunca gostei da minha caligrafia, que era miúda e irregular. Invejava a letra de minha avó, sempre correta, exuberante, cheia de arabescos. Quando ficou quase cega, ela não conseguia enxergar a pauta do papel e escrevia pelo prumo, sem ter como corrigir as imperfeições. Lamentava demais não poder ler, aí chegou a minha vez de retribuir a sua dedicação, lendo para ela os folhetos que eu comprava. Tenho, com sobrada razão, muita saudade desses tempos bons da minha infância.


* Quando me entendi por gente, a maletinha de minha avó estava abandonada em cima de um antigo caixão de farinha, no quarto grande da casa velha, para onde minhas tias deportavam tudo aquilo que consideravam quadrado, cafona e obsoleto. Nas paredes só havia lugar para pôsteres de Jerry Adriani, Roberto Carlos e Wanderley Cardoso. No rádio, os programas que tocavam Luiz Gonzaga ou cantoria também eram desdenhados pela 'nova' geração influenciada pela Jovem Guarda. Eu adorava ouvir os programas que minha avó sintonizava e tinha nas veias o germe da poesia. Fui responsável pelo resgate dessa preciosidade - a tal maletinha de 'romances', embora tenha ouvido alguns protestos do tipo: - Esse menino parece um velho, anda agarrado com esses romances 'véi' empoeirados, que só servem para sujar a casa!